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Expresso: Uma nova geração de direitos laborais - os direitos dos trabalhadores das plataformas
No final de outubro do ano passado, a Comissão de Emprego e Direitos Sociais (EMPL) recebia em audição pública Mark MacGann, ex-diretor de lobby e políticas públicas da Uber. As denúncias de MacGann, reveladas em julho de 2022, expunham várias das práticas agressivas - algumas de licitude duvidosa - praticadas pela Uber na abordagem a vários decisores políticos, o mais proeminente deles o então Ministro da Economia francês, Emmanuel Macron. Através destes «Uber Files», e de acordo com a investigação de um consórcio internacional de jornalistas divulgada pelo «The Guardian», ficámos a saber que a Uber terá violado a lei, enganado a polícia, incitado à violência entre os seus condutores e os taxistas e exercido pressão secreta junto de vários governos em todo o mundo.
Esta estratégia levou à implementação agressiva da empresa nos diferentes mercados, mesmo que tal tenha implicado contornar legislação existente ou exercer pressão política para que esta fosse alterada.
O seu modelo de negócio assenta numa lógica de cobrança de uma comissão por cada serviço que outros prestam em seu favor. De um modo simplista, são recrutados motoristas para oferecerem um serviço de transporte rápido, em que os utilizadores se registam através de uma plataforma digital. Este modelo não é exclusivo da Uber e, recentemente, expandiu-se para outros serviços de entregas, sobretudo na distribuição alimentar.
Se as estimativas da Comissão Europeia estiverem certas, em 2025 o número de trabalhadores ligados às chamadas plataformas digitais estará próximo dos 45 milhões. Esta dimensão exige um olhar atento sobre as suas relações contratuais e a garantia da sua proteção social.
Foi com este intuito que, atempadamente, a Comissão Europeia lançou uma proposta de Diretiva, desencadeando um processo legislativo a que o Parlamento Europeu deu pronta resposta. A responsável por este ficheiro, a socialista italiana Elisabetta Gualmini, nas propostas de alteração que introduziu à proposta da Comissão, pautou-se por uma abordagem assente em três princípios fundamentais:
1. A garantia de que os trabalhadores podem, caso assim o desejem, e sem necessidade de prova, ter assegurada uma relação contratual de trabalho com a empresa para quem prestam o serviço, cabendo às empresas a demonstração cabal de que o trabalhador é, na verdade, um trabalhador independente, e não o inverso.
2. A obrigatoriedade de reportar às autoridades nacionais e europeias dos trabalhadores que prestam serviços a cada plataforma, o que permite não só conhecer a fundo a verdadeira dimensão do número de pessoas que trabalham no setor, como aumenta a capacidade de fiscalização das autoridades nacionais. Adicionalmente, é assegurado o direito de associação e a impossibilidade de as plataformas impedirem ou colocarem obstáculos à sindicalização dos trabalhadores.
3. A exigência de maior transparência e “humanismo” dos algoritmos. Em Itália, um trabalhador foi informado pelo algoritmo da respetiva empresa que havia sido despedido. A tragédia desta ação é que ela ocorreu de forma automática, após esse trabalhador ter tido um acidente fatal. Para evitar situações como esta, a proposta do Parlamento prevê que todas as comunicações entre empresas e trabalhadores referentes à situação e aos direitos laborais tenham de ser feitas diretamente por uma pessoa.
O trabalho de Elisabetta Gualmini não foi, de acordo com os relatos da própria, isento de tentativas intensas de pressão por parte de vários agentes ligados a esta atividade. Aliás, após a primeira aprovação do seu relatório na EMPL, com uma confortável maioria - o que lhe conferiu o mandato para iniciar as negociações com a Comissão e o Conselho - foi com alguma surpresa que assistimos às tentativas dilatórias de um conjunto de deputados, liderados pelo centro-direita europeu e com o apoio de liberais e da extrema-direita, que se mobilizaram para impedir o início das negociações e reabrir a discussão do relatório que acabara de ser aprovado.
O debate em torno dos direitos destes trabalhadores é essencial. Numa dimensão socioeconómica, o principal desafio prende-se com a necessidade de dar resposta a uma realidade laboral que é de natureza cada vez mais fluída, marcada por uma circunscrição temporal muitas vezes limitada, permeável a relações laborais não formais, algo que é fundamental contrariar. Mas no campo político, os desafios parecem ser ainda maiores. O cordão sanitário europeu, que excluía a extrema-direita da influência sobre o debate democrático e social, parece já uma miragem e o centro-direita está numa trajetória de cada vez maior diálogo e aceitação das propostas da extrema-direita. Se para o primeiro desafio temos sido capazes de encontrar soluções, para o segundo a resposta tem de ser ainda mais assertiva e eficaz, sob pena de assistirmos a uma crescente ameaça à garantia dos direitos e da proteção social dos trabalhadores.
João Albuquerque
Eurodeputado do PS
Membro da Comissão de Emprego e Direitos Sociais
Fonte:Expresso