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Expresso: Proteger o jornalismo é proteger a democracia
Em 2022, 55 jornalistas foram assassinados enquanto desempenhavam as suas funções. Se recuarmos ao ano 2000, são já 1.795 os jornalistas mortos. Juntam-se a estes números trágicos mais de meio milhar de jornalistas atualmente presos, tendo perto de 100 sido detidos só este ano. Como se isto não bastasse, o relatório anual dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) tem revelado uma deterioração da liberdade de imprensa na UE, fruto da guerra na Ucrânia, sobretudo nos países do Leste europeu. Todos nos lembramos do assassinato a sangue frio da jornalista da Al Jazeera, Shireen Abu Akleh, em Israel, em maio do ano passado. E recordamos as mortes de Ján Kuciak e da sua noiva, Martina Kušnírová, e de Daphne Caruana Galizia, também eles jornalistas de investigação, alegadamente assassinados pelo trabalho que desenvolviam.
Se olharmos para o relatório de 2023 dos RSF, verificamos que o país da União Europeia que se encontra na pior posição é a Grécia, num penoso 107º lugar. Grande parte das razões para este desonroso lugar, e que colocam a Grécia em rota de colisão com o que deveriam ser os princípios comummente aceites por qualquer Estado-membro da UE, prende-se com a utilização de software “predador” - como o Pegasus - de vigilância e controlo de jornalistas, uma prática que tem crescido em vários países.
Ora, não podemos achar que é um mero acaso que a degradação dos índices de liberdade de imprensa em vários países da União Europeia coincida, atualmente, com a degradação da própria qualidade dessas democracias. Nunca é demais recordar: o jornalismo e a liberdade de imprensa são um pilar fundamental do Estado de Direito democrático e qualquer ameaça à sua integridade coloca em risco o funcionamento de uma sociedade que se quer livre e democrática!
Infelizmente, as ameaças à liberdade de imprensa e à sustentabilidade dos próprios órgãos de comunicação social (OCS) não resultam apenas da ação governativa ou estatal. A precariedade da atividade jornalística, uma remuneração muitas vezes baixa ou insuficiente, a concentração excessiva da propriedade dos OCS, cada vez mais reunidos debaixo de grandes e dos mesmos conglomerados, e uma cada vez maior tentativa de interferência no conteúdo editorial por parte dos proprietários das publicações são uma realidade cada vez mais generalizada na União Europeia e uma ameaça sistémica à independência da classe jornalística.
Para dar resposta a várias destas ameaças, o Parlamento Europeu aprovou, esta semana, o European Media Freedom Act (EMFA) - Ato sobre a liberdade dos meios de comunicação social. Este é um passo certo para garantir que o jornalismo continuará a ser o quarto poder democrático. Um quarto poder que tem de continuar a escrutinar em total liberdade e independência, seguindo os princípios éticos e deontológicos que guiam esta profissão.
Ao longo deste processo, tive a oportunidade de organizar dois debates - um no Parlamento Europeu, em Bruxelas, e outro na Universidade de Aveiro - onde pude escutar representantes dos jornalistas, dos editores, dos órgãos de comunicação social públicos e privados e, até, de publicações emergentes. Foi do diálogo permanente que mantivemos com o setor, quer português, quer europeu, que conseguimos garantir na votação final do Media Freedom Act quatro princípios que considero determinantes para proteger a integridade dos jornalistas e do próprio jornalismo:
1. A proibição da utilização de tecnologias de spyware a jornalistas e a salvaguarda dos seus direitos na proteção de fontes;
2. A transparência da propriedade dos órgãos de comunicação social e do seu financiamento, bem como a preservação da separação entre editores e detentores das publicações;
3. A total independência do novo órgão regulador europeu, que será autónomo da Comissão Europeia e do Conselho;
4. Uma maior proteção dos OCS face às grandes plataformas digitais, das quais muitas vezes dependem para a promoção do conteúdo jornalístico, mas das quais estão reféns, sendo condicionadas por critérios e algoritmos arbitrários e pouco transparentes.
Embora muito caminho continue por fazer, e com novos problemas que continuarão a desafiar a atividade jornalística - como é o caso da utilização da Inteligência Artificial - não tenho dúvidas de que, com estas garantias recentemente aprovadas no EMFA, fruto do grande trabalho de melhoria realizado pelo Parlamento Europeu, estaremos a proteger o presente e o futuro do jornalismo.
PS: uma nota muito negativa para a intervenção do deputado Paulo Rangel, que utilizou um bem escasso - o tempo de palavra no hemiciclo -, durante o debate do EMFA, para se focar num ataque ao Partido Socialista e procurar colar os deputados do PS ao partido eslovaco SMER, recentemente vencedor das eleições nesse país. Como bem sabe Paulo Rangel, e contrariamente ao que afirmou, toda a família política socialista europeia, onde se inclui o PS, repudiou e lamentou o assassinato de Ján Kuciak. E foi o próprio Partido Socialista Europeu (PES) que no passado já suspendeu o SMER, tendo Stefan Lofven, atual Presidente do PES, já anunciado estar neste momento a analisar a aplicação de possíveis novas sanções - que podem incluir a expulsão. Ao contrário das mentiras que proferiu no Parlamento Europeu, Paulo Rangel sabe que há uma linha que separa a família socialista europeia da sua própria família política: tal como já agimos no passado, não colocamos a cabeça na areia nem nos esquivamos de tomar uma posição sobre o SMER. E como nunca é tarde para reavivar a memória, convém não esquecer que foi a família política de Rangel, depois de dez anos de alinhamento com o Fidesz e Viktor Orbán, que teve de passar pela desonra de nem conseguir expulsar o partido iliberal da Hungria e de o ver sair por sua vontade.
Artigo originalmente publicado no jornal Expresso no dia 6 de outubro de 2023