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Jornal de Negócios: Direitos dos trabalhadores das plataformas – uma abordagem sem mitos
De acordo com os dados oficiais da União Europeia, existem atualmente cerca de 28 milhões de trabalhadores de plataformas digitais, tais como a Uber ou a Glovo, o que equivale à quase totalidade dos trabalhadores na indústria. Se se confirmarem as expectativas da Comissão Europeia, este número vai continuar a crescer, estimando-se que daqui a dois anos chegue aos 43 milhões.
Perante esta dimensão e a crescente importância económica da atividade, a Comissão Europeia propôs uma Diretiva que estabelece importantes salvaguardas legais e garante direitos laborais fundamentais. No seguimento dessa proposta, o relatório aprovado recentemente na Comissão de Emprego e Direitos Sociais do Parlamento Europeu, da autoria da socialista italiana Elisabetta Gualmini, vem melhorar o texto inicial da Comissão e promover um conjunto de alterações que aumentam as salvaguardas dos trabalhadores e asseguram uma maior vigilância e fiscalização por parte das autoridades competentes dos Estados.
Não é propriamente novidade que, tal como os Uber Files vieram revelar, muitas destas empresas levam a cabo fortes estratégias de lobby junto dos decisores públicos, muitas vezes recorrendo a práticas que visam deturpar a informação que é transmitida à opinião pública. Numa altura em que alguns deputados europeus procuraram adiar o início das negociações entre o Parlamento, a Comissão e o Conselho, coincidentemente, com base nos mesmos argumentos erróneos utilizados pelas plataformas digitais, importa desmistificar algumas das ideias que foram sendo propositadamente criadas sobre a proposta e clarificar alguns dos pontos essenciais daquilo que o Parlamento Europeu gostaria de ver implementado:
1. O estatuto de empregabilidade. Este é um dos pontos fulcrais da proposta e aquele que mais dúvidas tem suscitado. Ao contrário do que se tem tentado veicular, não haverá uma reclassificação automática dos trabalhadores ou uma passagem direta ao estatuto de trabalhadores por conta de outrem de quem era trabalhador independente. O que a proposta do Parlamento prevê é a inversão do ónus da prova, presumindo à partida que os trabalhadores têm um vínculo laboral às plataformas digitais – facilitando aos trabalhadores a afirmação de um vínculo de trabalho direto –, passando a competir às empresas a demonstração de que o trabalhador é, na verdade, um trabalhador independente. No entanto, e importa realçar, esta reclassificação estará sujeita à concordância prévia do trabalhador.
2. Fiscalização e aplicação da lei. Um dos pontos centrais da proposta será o de obrigar as empresas e plataformas digitais a declararem todas as pessoas que para si trabalham. É muitas vezes difícil identificar o verdadeiro número de trabalhadores destas plataformas. Com esta proposta, garante-se um maior conhecimento sobre a realidade e assegura-se que as autoridades nacionais competentes (em Portugal, a Autoridade para as Condições do Trabalho) podem realizar o seu mandato de fiscalização de forma mais eficaz. O mesmo se aplica à garantia de acesso dos sindicatos aos trabalhadores destas empresas e o direito destes trabalhadores de se organizarem em associações de trabalhadores ou de se sindicalizarem.
3. Gestão dos algoritmos. Para evitar que se repitam situações como a que ocorreu em Itália, em que um trabalhador foi automaticamente despedido por inteligência artificial depois de ter perdido a vida num acidente de trabalho, a proposta do Parlamento estabelece que todas as interações entre as plataformas e os trabalhadores têm de ser feitas com supervisão humana. Adicionalmente, todas as comunicações que sejam relativas às condições contratuais ou direitos laborais têm de ser realizadas por pessoas, garantindo-se ainda que os trabalhadores têm o direito de contestar decisões que tenham sido geradas automaticamente pelas plataformas.
Esta é uma proposta que responde a desafios dos novos tempos. Perante um elevado nível de desinformação - mais ou menos propositado - e dada a dimensão socioeconómica desta atividade, é fundamental termos um debate esclarecido sobre as propostas regulatórias que estão em cima da mesa e garantir que o desígnio desta diretiva é cumprido: proteger os direitos dos trabalhadores das plataformas.
João Albuquerque
Eurodeputado do PS
Membro da Comissão de Emprego e Direitos Sociais
Fonte: Jornal de Negócios